domingo, 11 de dezembro de 2011

Ana também ama

Ela agora era uma mulher direita. Aprendera a passar, cozinhar, e ainda guardava alguns dotes das experiências passadas. Era dona de casa.
Em quase nada lembrava mais aquela mulher de Tzangara; o cabelo havia cortado cerca de meio metro, as roupas alongaram-se de forma inimaginável. E mais uma vez o corpo afirmava: Era dona de casa.
Zelosa, de sorriso fácil e feição pura. Passava o dia sonhando com a chegada dos filhos, do marido. Queria mostra as coisas que havia aprendido no curso de moças recatadas – era assim que ela costumava chamar o curso de etiqueta. Sua professora, claro, era francesa. Francesa da mais alta classe de Paris. E Ana – que agora não atendia mais pelo nome completo- esforçava-se para ser a melhor, afinal, tinha uma família a gerir, uma casa a ser cuidada.
Se o almoço passava do horário um minuto se quer, Ana já se via aflita. Não era assim que Madame Jouarre havia ensinado. O marido não podia chegar em casa dez segundos mais tarde, ela logo imaginava que ele andara procurando outras negrinhas. Ela ainda lembrava-se de como tudo isso funcionava. Infelizmente ainda lembrava.
Os filhos, coitados. Os filhos vivam na dúvida. Seriam filhos realmente do pai que lhes registrou? Seriam irmãos por parte de pai e mãe?
Na escola era um horror. Haviam perdido a conta dos apelidos que os coleguinhas-monstros havia lhes dado. Não tinham culpa de a mãe ter sido mulher da vida. Todos sabiam disso, mas mesmo assim eles que pagavam o preço.
Ainda assim tinham pela mãe o carinho que todo filho deve ter. Tinham orgulho da comida boa, da roupa bem passada, da mãe atenciosa e preocupada que Ana era.
Toda noite era estranha. Ana ainda sentia falta da alta rotatividade que tinha a sua cama. Era desejo ruim, ela sabia, mas não aprendeu a se desligar do prazer descontrolado de ser de qualquer um.  Esse desejo, talvez, fosse ainda o último resquício de Deusqueira.

Pronto.
A noite havia passado. Tinha que acordar cedo, fazer o café, preparar a mesa e esperar pelo elogio. Como serva, ficou em pé, enquanto a família alimentava-se. Esperou, esperou, esperou... Não houve elogio. O seu dia havia ficado cinza.
Trancara-se no quarto e chorou horas seguidas. Molhou toda a fronha do travesseiro e agora teria de trocá-la. Talvez fosse bom... Queria mesmo distrair-se.
O quarto abafado. A cortina velha. Iria abrir a janela.
Nunca mais havia observado a rua, e não era por falta de tempo. Era por vergonha dos olhares de censura. Não percebiam que ela não era mais a mesma? Ou era?
Decidiu. Iria à feira, iria mostra-se casta e santa. Iria mostrar-se nova.
Era uma decisão difícil. Valeria à pena deixar o lar e ir aventurar-se na rua. E se o marido voltasse antes do horário habitual? O que pensaria?
Não havia tempo pra tantos questionamentos. Escolheu a saia mais longa, a blusa de mangas compridas, amarrou o cabelo do jeito mais tradicional possível e foi.
Passou o primeiro, o segundo, o terceiro e a cada homem que ela conhecia, a vontade crescia. Deus, e agora? E todo aquele esforço? E os filhos? E o marido? E a casa? Descabelava-se por dentro, mas mantinha a aparência serena. Comprou duas maçãs, uma banana e – por falta de sorte- não havia mais morangos.
Passou defronte de uma loja de espelhos e não reconheceu aquela senhora de apenas 23 anos. Havia envelhecido, talvez fosse castigo de Temporina. Maldita.
Aturdida por tantos olhares, Ana decidiu voltar pra casa. Varreu, varreu, varreu e varreu. Não havia um grão de poeira. Mas esse era seu passatempo preferido.
Que vida sem graça. Onde estaria agora se não tivesse decidido mudar? Talvez na cama com algum bom soldado. Talvez sendo exaltada por 10 homens. Mas não. Estava em casa. Estava procurando algum grão de sujeira, estava esperando o tempo passar.
Cansou-se.
Decidiu deitar.
Sonhou que pintava os olhos, rasgava a longa saia, soltava os cabelos e sentia-se livre. Livre e, ao mesmo tempo, presa aos filhos, presa ao marido. Agora ela tinha de tomar um rumo. Recatar-se para sempre ou tornar-se a rainha da sem-vergonhice, como haveria de dizer a nobre Madame professora.
 Acordou aturdida, correu pelo quarto e logo achou uma mala. Bastava. Seu nome era Ana Deusqueira e não Amélia.
Desordeiramente, jogou todas as roupas na mala e já pensava no trabalho que daria para apropria os longos vestidos a sua “nova” vida.
Separou um espaço na mala – e também no coração – e arrumou cuidadosamente um retrato dos filhos e do marido.  Era a última vez que iria vê-los.
E no bilhete havia:

Fui ao mercado, volto assim que terminar.                                                                      Ana.
                                             

Mercado nada. A mercadoria era ela.